terça-feira, 3 de janeiro de 2012

CHARNECA



Tudo o que temos no passado. É a lição para o futuro.

                         Manoel de Oliveira


                  Estávamos no Natal de 1955 e havia presépios em algumas casas. O frio fazia-se sentir e as crianças ansiavam pelas prendas que iriam receber na noite mais comprida do ano.
               Meus pais tinham uma taberna e uma carvoaria: o carvão era o combustível mais usado e mais barato na época. A carvoaria estava instalada na metade de um barracão, a outra metade tinha apetrechos agrícolas, ferramentas, comida para os animais de criação que viviam em capoeiras.
              Minha mãe tinha muito trabalho e meu pai para a aliviar contratou um empregado (um criado, na altura) para a carvoaria e para tratar dos animais. Chamava-se Charneca, alcunha que lhe deram quando esteve doente em criança. Era um homem de trinta e poucos anos, altura média, seco e careca. Usava uma boina já sem cor, enterrada na cabeça, que nunca tirava. Tinha traços grosseiros, Mas um rosto muito expressivo.
             Quando o meu pai falou com ele para o contratar, perguntou-lhe se era sério porque ia trabalhar com dinheiro. Ele respondeu.
             - Sou…Sou filho da Fiela, sou fiel e trabalhador.
             Foi viver para uma parte da carvoaria e lá comia e vivia feliz porque tinha trabalho. Por ser franzino não lhe davam trabalho, mas ele precisava de dinheiro para o tabaco, como ele dizia.
              O Charneca conquistou-nos a todos com a sua alegria, boa disposição e seriedade.
Uma vez perguntei-lhe:
              - Charneca, porque és tão alegre?
               Ele respondeu-me:
              - Porque estive muito doente e venci a doença, dou valor à vida.
              Chegou então a véspera de Natal. Meu pai e meu irmão tinham trazido lenha para aquecer a casa e a minha mãe e irmã andavam num corrupio com os afazeres para a ceia, quando me chamaram:
              - Margarida, vai pôr a mesa e põe mais um lugar, hoje somos seis.
              - Mãe, é o Charneca que janta connosco?
              - Sim…
               Fiz o que me disseram e fui logo dizer ao Charneca:
               - Charneca, hoje…jantas connosco! É a noite do nascimento de Jesus e se calhar até tens uma prenda…
              - Prenda, eu…nunca tive nenhuma.
              - Quando eras criança não te davam prendas no Natal?
              - Não, nem a mim, nem às crianças do meu bairro, até a comida era pouca…quanto mais prendas…
              - Então, estás contente, por passares a noite connosco?
               - Sim, estou…vai ser a minha feliz ceia de Natal.
               Preparávamos para ir para a mesa, quando o Charneca tirou a boina e o seu rosto resplandecia de felicidade. Foi uma noite de muita paz, de ternura e de comunhão entre todos.
               Jesus sorriu.

 
Um conto de Esteline
Natal 2011


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